OS BONS TRICOLORES

domingo, 21 de dezembro de 2008

O ESQUILADOR

Trilhando ainda pelos caminhos da boa música do nosso rincão gaúcho, gostaria de fazer uma análise de uma letra que para mim, é uma das mais belas composições da safra sulina, e assim como um bom vinho da nossa Serra, quanto mais velha fica, mais significado tem para esta pessoa que vos escreve. Trata-se da música "O Esquilador". Composta por Edson Otto ganhou várias versões, nas vozes de muitos milongueiros gaudérios, entre eles, Joca Martins, Os Serranos, Telmo de Lima Freitas, e talvez outros que me fugiram da cabeça.
Tenho muito que dizer sobre, ainda mais porque darei a ela uma visão historiográfica, com análise crítica que, respeitosamente ela merece, por representar tão bem a transição perplexa do método funcional ortodoxo de alguns dos ofícios que perderam suas características primárias, sendo substituídas por outras que, embora tenham continuado braçal, modernizaram os velhos modos de trabalho, invadindo inclusive as práticas rurais dos pampas por aí a fora.
Vamos analisar frase a frase esta fabulosa obra da música gaúcha, e procurar compreender o que queria dizer o velho Chirú.
Não que eu seja contra a tecnologia, ela tem mesmo muito a nos ajudar, todavia, ao efetivar-se, substitui em alguns casos a antiga mão-de-obra braçal, otimizando recursos e os lucros, seja do pequeno do médio ou do grande empresário. Mas ela está aí, e veio para ficar.
Como diria Marx, o velho artesão foi tirado de sua antiga e modesta oficina e condicionado em uma fábrica, onde vende a força física e seus dotes de ofícios por dinheiro, esta troca, ele chamou de "mais-valia". Assim sendo, automaticamente, o seu trabalho que era praticamente manufatureiro, em velhos processos quase artesanalmente vai sendo substituído por equipamentos eletrônicos, máquinas que fazem a mesma coisa, entretanto, em um menor tempo. Isso gerou inclusive a exclusão de alguns trabalhadores - podemos também chamar de desemprego - uma vez que, a otimização do trabalho reduz, tempo, processo, matéria prima e mão-de-obra.

Quando é tempo de tosquia já clareia o dia com outro sabor/
As tesouras cortam em um só compasso enrijecendo o braço do esquilador/

Dá-se logo de início a impressão de um ato funcional remunerado, se não, pelo menos uma atividade onde representa um valor monetário, valor de troca. Outro aspecto a ser destacado na primeira estrofe é que, pelo fato de ter salientado a expressão de temporalidade, concluo que se trata de uma atividade que é exercida em determinadas épocas do ano. Muito provavelmente quando se renova o ciclo natural do próprio animal, ou seja, quando seu pêlo já esta no ponto para a “tosquia”.
Na segunda estrofe notamos que se trata também de uma atividade coletiva, talvez reunissem peões em uma espécie de cooperativa, ou como é muito provável, na maioria dos casos, eram reles trabalhadores em uma grande propriedade, muito estudada pelo Karl economista. Eu prefiro chamar de latifúndio, o que dá na mesma, todavia, nas músicas e nas licenças poéticas dos que eu chamo de “poetas anônimos” do Rio Grande do Sul, são representadas por eufemismos como: pago, estância, etc. O que não pode deixar de ser relacionado é que, trata-se de trabalhadores, que, embora a troco de muito pouco, exerciam a função com certo garbo, e orgulhavam-se de ser o que eram. Outro ponto a ser destacado na segunda estrofe é que, embora esteja bem explícita a palavra “esquilador”, não era uma atividade restrita apenas ao sexo masculino, em muitos casos, trabalhavam famílias inteiras na função, inclusive crianças.
*TOSQUIA= Ato ou efeito de tosquiar. Cortar rente pêlo, lã ou cabelo. Tosar.


Um descascarreia, o outro já maneia e vai levantando para o tosador/
Avental de estopa, faixa na cintura e um gole de pura pra espantar o calor/
“Descascarreia” e “maneia” são jargões que podem ser definidas como peculiarmente rio-grandense. Talvez sejam mais um entre tantos outros termos híbridos que compõem o léxico do interior do estado. Não há uma definição mais científica para elas – pelo menos não no Aurélio. Mas temos, ainda que no campo do imaginário, uma noção do que elas devem representar. Não está muito longe de um ato funcional, descascar, preparar. Atividade prévia ao ato de tosar, aqui encontramos mais uma evidência de trabalho coletivo.
Na estrofe seguinte está relacionada à vestimenta do peão, pode-se aí adicionar bombacha, alpargata, chapéu de feltro, lenço e camisa de manga. A “pura” citada, não é nenhuma bebida alcoólica, se fosse, estaria representada com outros jargões como Água Benta, canha, entre outros que designa a bebida. Neste caso é água mesmo.


Alma branca igual ao velo, tosando a martelo quase envelheceu/
Hoje perguntando para a própria vida pr'onde foi à lida que ele conheceu/
Analisando onde o termo “velo” empregado, creio que esteja qualificando o adjetivo “branca”, ou seja: “alma branca igual ao velo”, entende-se que, é tão branca quanto. “Tosando a martelo quase envelheceu” complementa a idéia inicial de que é uma pessoa que executa a função, e não uma máquina, além do mais, também está indicando que a tosa a martelo – processo manual – já é um método arcaico de executar a tosquia.
A velha tosquia tornou-se um processo ultrapassado, automaticamente substituído por um menos árduo, derivado de uma automação que não nasceu no continente, assim sendo, como não poderia ser diferente causou perplexidade entre os velhos trabalhadores da lida de tosquia.
*VELO= Lã de carneiro, ovelha ou cordeiro. Pele de uma rês ou lã dessa pele.

Quase um pesadelo, arrepia o pelo do couro curtido do esquilador/
Ao cambiar de sorte levou cimbronaço ouvindo o compasso tocado a motor/
Muito bem frisado o termo “pesadelo” vem atestar a perplexidade que a automação do processo de tosquia causou. E na estrofe seguinte, “cambiar” vem substituindo “mudar”. Ao mudar de sorte levou um grande susto, ficou surpreso ao avistar a “novidade” a sua frente, no caso do motor. Agora, a lida da tosa deixou de ser manual e tornou-se o mais novo alvo da idade contemporânea. E como muitos outros ofícios, também teve sua mão-de-obra diminuída e/ou substituída pelas máquinas.

A vida disfarça lembrando a comparsa quando alinhavava o seu próprio chão/
A síntese mais objetiva que podemos tirar desta estrofe é que Ela atesta realmente o gosto pela função de tosquia e, mais do que isso, atesta todo o amor do homem que é apegado a terra, a sua terra de origem, a seu pago. A lida com a terra e de todos seus derivados, conseqüentemente, a ida com animais, ou, “o bicho” como pitorescamente preferem fazer referências. Alinhavar o seu próprio chão nada mais é do que trabalhar no que é seu. Não de propriedade, mas de origem. Como citei acima, embora estivessem inseridos em um sistema semi-escravista, latifundiário, apenas como mão-de-obra barato, adoravam exercer as funções relativas às tradições chirús – a de índio velho criado em galpão na lida com o gado. Além do mais, significa tornar sagrado o lugar de onde tira o sustento do próprio suor. Neste caso de quando extraia e preparava a lã.


Envidou os pagos numa só parada, 33 de espada, mas perdeu de mão/
Envidar significa apostar, entretanto, neste caso é um pouco diferente porque está relacionado ao truco argentino. Assim sendo o envido é também uma espécie de desafio. A coisa acontece mais ou menos assim: o jogador que “envida propõe aos outros participantes da mesa que se some os tentos de mesmo naipe e assim, quem ganhar tem acrescentado dois tentos. Mas é democrático, o adversário aceita se quiser, mas como o truqueiro geralmente adora levar fama de “bagualão”, aceita o desafio, a na pior das hipóteses, resolve-se a adagas. E então concluímos que se trata de uma ação alternativa e derradeira, apelativa, um último recurso. Neste caso, ele assim o fez, e perdeu.
Os 33 de espada já é bem mais complexo de se entender, mas vamos lá, vou tentar expor de maneira muito clara – se bem que se trata de um jogo da campanha, ou seja, da fronteira, assim sendo, é mais castelhano que brasileiro, contendo um grande influência argentina, e...já viu, não é? Assim complica mesmo.
Os pontos do envido são contados da seguinte maneira: são somados os valores das cartas de mesmo naipe e acrescentados a estes 20 tentos. Por exemplo: se o jogador possuir um ás e um 5 com naipes iguais, estes irão ser somados. Dará então um total de 6 tentos, agora sim, a estes são somados mais 20 tentos, resultando um total de 26 tentos em sua mão.
Para facilitar ainda mais o raciocínio – e as contas – devo ressaltar que as cartas “8” e “9” são retiradas do jogo. Assim sendo ficamos com as seguintes cartas na mesa: ás, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. Assim concluímos que a maior pontuação que alguém pode atingir será 13, que é a soma da carta “6” com a “7”, resultando em um total de “13” tentos que, ao serem somados aos 20 tentos que as regras do jogo dispõem, teremos um total de 33 tentos. UFA!
Mas no contexto da música o autor não está se referindo a um “blefe”, no truco tradicional – ou o que se joga lá no Brasil – seria o mesmo de ter três cartas “4” nas mãos e gritar “truco” para tentar intimidar os adversários, mesmo não tendo em mãos cartas o suficiente para ganhar o jogo. Dentro da metáfora, recorremos a busca de uma tentativa desesperada de possuir outra vez a convicção de ter sua vida e tudo que ele acreditou sempre de volta. Todavia, perdeu de mão, neste caso a envida não deu certo, embora ele tivesse os 33 tentos completos, ele perdeu de mão, o que quer dizer que não era ele o “Mão” da jogada – não era a vez dele jogar, assim sendo seu opositor bateu na sua frente, levando assim a jogada e o que nela foi empenhado através da envida. Assim, o tosador teve necessariamente sua vida alterada. Dentro da metáfora isso quer dizer que houve sim, tentativas de alterar o modo de vida, ou neste caso, de retroceder a sua antiga lida, mas não houve jeito, ele realmente “perdeu a parada”.
Em minha opinião sempre ponderada e equilibrada, acho que é uma metáfora usada para apostar algo menos concreto e mais objetivo, como propriamente àquilo que acreditava, tendo em vista a forma que era, como era e o que tornou-se agora com o advento da tecnologia.
Pagos, como já mencionei anteriormente, significa a casa, o chão, o continente, a província, terra de origem, querência. E mais, o lugar de afeto, onde se passa a maior parte da vida.


Nesta vida guapa vivendo de inhapa, vai voltar aos pagos para remoçar/
Quem vendeu tesouras na ilusão povoeira, volte pra fronteira para se encontrar/

Inhapa é outro jargão gauchesco que quer dizer “brinde”, “presente”, “oferta”, “esmola”, nada que ultrapasse um pequeno médio valor. Alguns comerciantes davam a seus fregueses. E aqui efetiva-se o pesadelo do tosador, com o advento da tecnologia a atividade que lhe rendia o sustento foi substituída por máquinas, tirando assim o seu emprego, fazendo com que o esquilador passasse a viver de favores, ou, de “inhapa”.
Remoçar, está intrinsecamente vinculada ao ato de recomeçar, é claro que em outros termos, mas neste caso, ao analisar o contexto em que está inserido concluo que ele quer dar um novo início, e para isso volta ao seu “pago”, ou para a “fronteira”, que, nesta estrofe está muito mais ligado a um espaço físico, material, social, pessoal. Um lugar de quatro paredes e um teto, uma casa, uma lar. Onde retorna para “remoçar”, para se encontrar.

Então é isso galera, acho que me estendi um pouco, mas vale a pena, espero que gostem.

3 comentários:

Anônimo disse...

Nossa!!! Sua análise da música ficou fantástica, passa um filme em nossa mente imaginando todo o precesso de tosquiar uma ovelha.
ADOREI!!!!!!!!!

Muito bem escrito.

Unknown disse...

viemo ai dar uma olhada - tu fez uma tese - sou um gaucho urbano valorizo um monte que cultua as tradiçoes mas nao cultu-o - nasci em Bagé filho de agricultor e professora e fui direto para a cidade. O joca martins da minha area. O teu texto é otimo mas tens que achar o publico dele - tu tem um baita potencial para contruir "ideias" e isso é o que todos procuram. Nas cartas diz que o...aquele pessoal da azenha cai direto para a serie D...abraços

Anônimo disse...

Boa tarde, gostei muito da sua análise e por isso queria ajudá-lo com um pequeno detalhe: segundo o Dicionário Gaúcho Brasileiro, de Batista Bossle, descascarrear seria o ato de "tirar de um ovino as bolas de excremento que lhe aderem à lã". Espero ter ajudado, abraços.